A Natureza, também um personagem
- Ivan Alves Filho
- 5 de abr. de 2024
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Há um conto de Eça de Queirós estranhamente dramático, apesar de ter uma personagem só. Intitula-se Entre a neve. Ele narra a luta inglória de um lenhador surpreendido por uma tempestade de neve. A sua tenacidade. O confronto, por vezes tão desigual, entre o homem e a natureza está no cerne também de uma novela extraordinária, O velho e o mar, de Ernest Hemingway. Não só: vários textos de Jack London vão nessa mesma direção. O chamado selvagem é um deles. E o ótimo Cesare Pavese, escritor de origem camponesa, observou certa vez que Daniel Defoe era mestre em dramatizar situações em que o homem se contrapunha às forças da natureza. Apesar de Cesare Pavese não estar se referindo de forma explícita ao romance Robinson Crusoé, penso que queria dizer que o impacto maior do livro de Daniel Defoe residia, justamente, na oposição homem/natureza, elevada quase às últimas consequências. Com a vitória do homem.
Inegavelmente, é uma característica dos grandes textos da literatura universal transformar o meio ambiente em personagem, por vezes até mesmo em personagem principal de uma determinada obra.
Afinal, a ação humana repousa, em parte, nessa relação ambígua que estabelecemos com a natureza, pois o homem, simultaneamente, a integra e submete. De certa maneira, isso ocorre também nas relações sociais em sociedades divididas em classes, onde a submissão também é a regra. Até quando, não sabemos. Não há nada mais universal do que isso, por enquanto.
A natureza do homem é cultural e a sua cultura algo natural nele. E a prova está na literatura. Como também está nas viagens.
Vindo de Espanha, penetrei em Portugal pela Serra da Estrela, que percorri poucos anos depois de a Revolução dos Cravos eclodir por lá. Situada no Norte do país, uma região de corte conservador, alicerçada na pequena propriedade rural, a Serra da Estrela encerrava uma rusticidade há muito desaparecida da maior parte da sofisticada Europa.
Terra de tradições, ela encantava o visitante novo pela beleza de suas paisagens e de seus personagens. Sobretudo de seus personagens. Pois na Serra da Estrela daquela época ainda era possível encontrar uma velha a fiar, ou um velho a caminhar o seu caminho sem fim, apoiado em um sólido cajado. Figuras quase vegetais. Delas podiam dizer que se confundiam com a natureza circundante, que se agigantaram ao sopé daquelas montanhas. Figuras soturnas também, é preciso reconhecer. Terras de melancolia. Acho que essas pessoas ainda se encontram por lá, em meio àquelas névoas. Certamente ainda se encontram por lá.
A Serra da Estrela surpreendia o visitante mais de uma vez. Ali nada é banal. Ainda hoje acredito que seja assim. De suas partes mais altas era possível avistar extensas áreas de Portugal e também de Espanha. A Serra da Estrela praticamente separa o Norte do Sul de Portugal. Tem a responsabilidade matemática, diria eu, de cortar esse pequeno país ao meio. E a Serra da Estrela lembra estranhamente a região dos Alpes, portanto tão distante dali. Ou mais apropriadamente os Apeninos, que praticamente cindem também a Itália em duas.
Eu ainda me recordo dos nomes pitorescos das cidadezinhas situadas nos seus arredores – Celorico da Beira, Fornos de Algodres, Manteigas, Oliveira do Hospital, Covilhã, Seia.
Em muitos lugares não havia luz. Para que, se havia estrelas?
O vento soprava forte, eu me recordo, na Serra da Estrela – contudo nenhum vento se apresentava forte o suficiente para fazer estremecer os seus vilarejos de pedra. Aquelas suas aldeias de granito, onde o viajante ainda pode passear por velhas pontes romanas e antigos castelos.
Sabedoria camponesa, sem dúvida. O vento pode soprar à vontade. Com a força que quisesse. Que as pedras protegiam aqueles homens até o fim dos tempos. Quem se importaria com a força dos ventos? Quem? Mais, até: quem se importaria com o fim dos tempos? Quem?
Pelas manhãs, o sol esquentava forte na Serra da Estrela, quase queimando seus relvados naturais. Sol de montanha. Luminoso e reconfortante. O Sol que dourava as vinhas e quase fervia o branco leite – e nós, quando bebemos o vinho e saboreamos o queijo daquelas serras, provamos na verdade pedacinhos de sol. Pelo menos assim nos parecia. Ou nos apetecia. Fabricado com leite de ovelha bordaleira, o Queijo da Serra é coalhado – em requinte poético, talvez – pela flor do cardo cinara cardunculus, planta que nasce espontaneamente na região. Ligeiramente abaulado, de cor amarelada e crosta lisa, de incomparável textura, é queijo e também é flor. O ideal é fazer acompanhar o queijo por uma copiosa fatia de pão de centeio, além de um borbulhante vinho Dão de caneca, obtido nos vinhedos espalhados pela própria Serra. Compondo a mesa, uma flor, solitária e viva, boiando em uma jarra de cristal. E depois mirar o horizonte, o céu límpido da Serra, saboreando a felicidade do momento. Ora (direis) ouvir estrelas.
A ligação da Serra da Estrela com o Brasil se fez por intermédio de ninguém menos que Pedro Álvares Cabral: seu pai, o fidalgo Fernão Cabral, possuía propriedades ao sopé da Serra da Estrela. E o próprio filho Pedro nasceu em Belmonte, bem junto à Serra. Rompendo o cerco das montanhas, Pedro Álvares terminou atravessando mares nunca d’antes navegados.
Tenho saudades daquelas terras entre as serras. A memória é a maior prova de que o passado não passou. De que ele na verdade nunca passa. Ao contrário. O passado vive, pulsa em nós. O passado é o presente hoje. Somente a memória me deixa sentir. Na Serra da Estrela – é o que precisamente eu sinto - tudo parece grande. Tudo fascina o viajante. A fúria da natureza, nas noites de nevasca. A imensidão dos abismos, que por vezes infunde o medo. O topo inacessível das árvores. Ah, as azinheiras, os sabugueiros, os pinheiros imponentes da Serra da Estrela! Árvores vizinhas do céu! E também a doçura ali na serra é grande – a doçura imensa das estradinhas de terra, silenciosas, cercadas de verde ora claro, ora escuro. Com o chão atapetado de folhas. E de todas as tonalidades de marrom também. Verde e marrom, marrom e verde, assim vejo eu aquelas serras do sossego.
Normal que essas terras tenham fascinado escritores como Gil Vicente – que lhe dedicou a Comédia pastoril da Serra da Estrela, em 1527 – ou Ferreira de Castro – que ali ambientou o seu mais belo romance, A lã e a neve.
Sobretudo fascina o viajante a coragem imensa dos homens ali estabelecidos. Homens feitos de vinho. De pão. Homens feitos de queijo. Lenhadores. Fiandeiras. Pessoas de rostos tostados. O trabalho estruturando a vida tão quieta naqueles cimos.
Homens desde tempos imemoriais flutuando junto àquelas estrelas.
Ivan Alves Filho, historiador.
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