Minha memória está cheia de sons. Não quero esquecer nenhum deles. Estes sons estão em um cantinho só meu, cheio de vida e de cores e há muito tempo só existem em mim.
O som das vozes dos meus pais me ensinando que a vida era dura mas que precisava ser vivida; o som dos tabuleiros de broa entrando no forno da casa da vó Guimá e o som da sua agulha de crochê tecendo colchas e toalhas coloridas; o som das alpargatas velhas da Tia Regina andando pela casa e o ranger de sua velha cadeira de balanço quando ali sentava-se para ler – esse era o som mais gostoso: o do passar das páginas dos livros; o som das minhas sandálias velhas descendo a ladeira da Matriz; o som da água das bicas do Chafariz caindo no poço frontal ou nas minhas mãos e o do lateral onde as lavadeiras esfregavam, torciam e quaravam a roupa; o som do bosque da Mãe D’Água – os pássaros, as borboletas, a densa floresta que me cobria de sossego, a terra, o caminhos e a água, muito som de água.
O som da casa de tábua onde eu morava; o do fogão a lenha num dos cantos da cozinha. O som do roçado de onde meu pai, com muita dificuldade, tirava o sustento da família.
O som do sino da Matriz chamando os fiéis para as missas dos domingos, quando alertava a todos da morte de um tiradentino, quando avisava que a procissão chegava ou saía da Igreja, ou alegrava a cidade com uma notícia festiva.
Eu, menina, e meus irmãos brincávamos de ‘casinha’, de esconde-esconde, de finco... e a diversão mais arriscada era descer o morro do São Francisco num carrinho de rolimã. O diálogo dos gritos de pavor e alegria tem marcos temporais indeléveis que marcaram um tempo e que minha memória guardará para sempre.
O som do dia mais feliz em nossa casa. O dia da matança do porco. O dia que acordávamos cedo com o grito do porco sendo sacrificado pelo meu tio – papai não tinha essa coragem. O dia em que minha mãe cozinhava todas as carnes e guardava-as imersas na banha e em latas enormes, a linguiça era pendurada acima do fogão a lenha para curar e o almoço do dia era o ensopado dos ‘miúdos’. Minha mãe ficava feliz em aplacar nossa ansiedade vendo-nos comer até limpar o prato. Só dali seis meses viveríamos novamente aquele momento. Gosto de ouvir o eco do som da felicidade desse dia...
Porém, as lembranças que mais me emocionam são da natureza e da simplicidade da vida naquela Tiradentes: o rio e os riachos de água límpida e fria, as águas do mangue e da cachoeira onde íamos passear e nos banhar, mesmo a contragosto de nossos pais; as plantinhas de cores variadas, cheias de besouros coloridos; as espigas de milho, que para mim eram bonecas de cabelos lindos – cor-de-rosa, amarelinho, esverdeado...; os passarinhos: rolinhas, canários, curiós, beija-flores, sanhaços e outro montão de que nem me lembro mais os nomes. Nunca me esqueci do canto da passarada ao amanhecer: era um trinado sem fim, uma festa diária. O som mais lindo que já ouvi.
Durante o dia, o céu limpinho me parecia ter sido varrido por alguém, assim como minha mãe varria o terreiro da nossa casa. Santa inocência!
E as noites de verão? Como me encantavam as sombras das árvores que a lua cheia projetava na rua, onde ficávamos até mais tarde observando as estrelas, contando-as, nomeando-as, e elas me pareciam mais numerosas que hoje, penduradas no Céu como enfeites de árvore de Natal... Tempos bons aqueles! Nas de inverno recolhíamos quentinhos enrolados nas ‘cobertas’ e nos deliciávamos com a sopa de macarrão com legume e feijão que minha mãe cozinhava quase todas as tardes.
Mas, hoje, só saudades... Daquele lugar mágico, daquela cidade encantada que minha memória resgata com tanta vivacidade, só vejo breves resquícios, prestes a se desfazerem também. Aquela exuberância em verde e vida de toda a natureza ao redor foi apagada em nome do progresso. Pouco a pouco, tudo foi se modificando... E eu, impotente, assisti a tudo, dando a cada dia um novo adeus lacrimejante a algum elemento que se ia embora, sem chance de regresso.
Mataram minha cidade e parte da minha história, destruíram meus castelos de sonho, e nada pude fazer para impedir. Aquele mundo encantado, que existiu concretamente, agora é abstrato, só existe em minha memória. Uma memória cheia de sons... e esses sons ninguém vai levar de mim.
Márcia Heliane Gomes, escritora Responsável pela Aquarius Produções Culturais Crônica extraída do Livro Uma Menina de Minas, de minha autoria.
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