Pertencimento e identidade: sentimentos de valorização
- Márcia Heliane Gomes
- 27 de set. de 2023
- 5 min de leitura

Construir memórias é também um trabalho de busca de lembranças.
O mundo da memória é o lugar onde nos reconhecemos, nos identificamos.
Somos aquilo que lembramos, a nossa riqueza são as lembranças que conservamos e não deixamos apagar e das quais somos o único guardião.
Se o mundo do futuro se abre para a imaginação, mas não nos pertence mais, o mundo do passado é aquele no qual, recorrendo às nossas lembranças, podemos buscar refúgio dentro de nós mesmos, debruçar-nos sobre nós mesmos e nele reconstruir nossa identidade.
(...)
Márcia Heliane Gomes
(Crônica Nestina, uma benzedeira; Uma menina de Minas. 2021)
Os sentimentos de pertencimento e identidade são motores geradores de um despertar nas pessoas reflexões sobre o mundo, sobre suas atitudes e sobre sua vida. Através dessas reflexões torna-se possível que elas olhem mais para si e transformem seu modo de viver, conduzindo a vida de uma maneira onde o diálogo prevaleça, que o amor transborde e inspire, tornando-a mais tranquila e suave em meio aos atropelos do dia a dia. Sensibiliza-se, também, como o primeiro passo para a compreensão do nosso ‘lugar no mundo’.
O que toca o coração das pessoas move e faz com que elas ampliem a visão de mundo, saiam do comodismo e passem a enxergar e compreender mais o outro e o que está no seu entorno, acontecendo assim a transformação das atitudes e dos valores de cada um. Sentimentos como pertencimento e identidade podem interferir na construção dos valores e das atitudes.
A vida é feita de momentos simples que nos comovem. São esses momentos que, verdadeiramente, marcam e trazem o sentimento de identidade ao ser humano. Assim, ser sensibilizado é deixar-se envolver pelos sentimentos, tentando despertar o lado bom e deixá-lo fluir na vida.
Os sentimentos de pertencimento e identidade quando fortalecidos dentro das relações humanas, valores como respeito, cuidado, ajudam também no ‘estar presente’, no ‘pertencer’. É preciso perceber como ‘vivemos’ nossa cidade, como valorizamos nossa cultura, nossos ambientes, nossas relações, nossas tradições, nossa dedicação com o futuro e a responsabilidade com as nossas memórias e nosso comprometimento com a preservação e a valorização do nosso patrimônio material e imaterial – vale lembrar que ‘patrimônio’ é algo mutável. Não é algo natural, nem eterno, nem estático e sim, uma construção social.
A relação homem/natureza está sendo prejudicada da mesma forma. Em busca de um consumo desenfreado, fortes crises ambientais já começaram a surgir, e em consequência todo o planeta está sendo prejudicado. Com tudo isso, percebo que o homem vem se tornando um ser desenraizado. Sobre esse assunto, Laís Mourão Sá (2005), no texto “Pertencimento”, descreve:
A ideologia individualista da cultura industrial capitalista
moderna construiu uma representação da pessoa humana
como um ser mecânico, desenraizado e desligado de seu
contexto, que desconhece as relações que o tornam
humano e ignora tudo o que não esteja direta e
imediatamente vinculado ao seu próprio interesse e bem-estar.
(...)
Diz-se, então, que os humanos perderam a capacidade de pertencimento. (SÁ, 2005, p.247)
Nesse trecho percebe-se que as pessoas já não valorizam mais o simples e aquilo que de fato é necessário à vida, ou seja, encontrar e maravilhar-se com o belo das pequenas coisas e dos pequenos gestos deixando-se envolver pelas alegrias desses momentos. O individualismo faz com que cada um pense somente em si, deixando de lado o espírito coletivo de comunidade e gerando catastróficas desigualdades sociais. A capacidade de pertencimento que Sá (2005) descreve, é a capacidade do ser humano de se sentir pertencente ao meio, enraizado e, quando isso acontecer, as pessoas despertarão o seu lado mais sensível, refletirão sobre o que realmente valorizam na vida e estarão abertas a pensar em comunhão, em comunidade.

É preciso cativar os sentimentos de pertencimento e identidade de forma que despertem o nosso lado crítico e reflexivo, que despertem o nosso lado bom, desenvolvendo sentimentos como amor, respeito, responsabilidade, cuidado, proteção, solidariedade, compromisso e honestidade.
Pertencimento é quando uma pessoa se sente pertencente a um local ou comunidade, sente que faz parte daquilo e, consequentemente, se identifica com aquele lugar – vai querer o bem, vai cuidar, preservar, valorizar, vai ‘guardar’... pois aquele ambiente faz parte da sua vida, é como se fosse uma continuação de si próprio. Em um documento emitido pelo Conselho Nacional de Assistência Social (CONAS) e Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), intitulado “Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes”, do ano de 2009, é descrito em seu glossário o que são grupos de pertencimento:
Grupos de pertencimento: Grupos aos quais ao longo da
vida uma pessoa participa (familiares, escolares,
profissionais, de amizade), que são fundamentais para a
construção da identidade individual e social. (CONAS/CONANDA, 2009, p. 97)
Sobre a identidade, Rogério Ribeiro Jorge (2009) em sua tese Território, identidade e desenvolvimento: uma outra leitura dos arranjos produtivos locais de serviços no rural afirma que a identidade é o "resultado de um trabalho permanente de renovável construção social e política, mas também geográfica, que leva em conta a extrema mobilidade dos agentes sociais” (JORGE, 2009, p. 240).
Segundo Zygmunt Bauman (2003) no livro Comunidade: a busca por segurança no mundo atual defende que a construção da identidade é um processo sem fim, passível de experimentação e mudança, de caráter não definitivo, fazendo com que ela seja construída continuamente ao longo da vida.
Já Humberto Maturana e Nisis de Rezepka (2003) no livro “Formação Humana e Capacitação” defendem que a identidade “não é uma propriedade fixa, mas um modo relacional de viver que se conserva no conviver”. Afirmam que existe uma identidade sistêmica e que quando modificada a dinâmica do sistema a “identidade” ou “ser” estará também sujeito a uma modificação. A identidade é construída durante todo o decorrer da vida, e ela é passível de mudanças de acordo com os momentos e fases que cada um vive. Porém isso não significa que de repente eu esquecerei minha identidade e me tornarei totalmente diferente, como se com a renovação eu estivesse começando sempre do “ponto zero” da nossa vida. Penso que conforme vamos amadurecendo mudamos os gostos, os jeitos e a forma de ver o mundo, mas isso não apaga o que já se passou. Conforme vamos vivendo e mudando nossa identidade, vamos acrescentando coisas novas até formar o ser por completo, o indivíduo, e que a essência humana que temos em nós, e todas as coisas que já nos tocaram no decorrer da vida, essas nunca serão esquecidas.

Com o sentimento de pertencimento é possível que as pessoas valorizem e cuidem mais do ambiente que estão inseridos e das pessoas, seres e coisas que ali participam. O pertencimento cria uma identidade no indivíduo que fará com que ele, inserido dentro de uma comunidade e um contexto específico, se empenhe para que coletivamente lute por uma sociedade mais justa.
Portanto, a identidade é ao mesmo tempo algo que pertence ao indivíduo e também algo coletivo, à medida em que esse indivíduo exerce o seu pertencimento em contato com os outros. A identidade, então, tem mão e contramão.
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