Aos que tombaram na luta para livrar a Itália e Portugal da bota fascista, em1945 e 1974.
Este texto é dedicado também à memória do extraordinário pensador e homem de ação Karel Kosik, marxista e resistente antinazista tcheco.
A perda de civilidade e de cordialidade nas relações humanas no Brasil é assustadora. Avassaladora mesmo. E isso se reflete em vários campos da vida nacional.O Ensino Fundamental, responsável por formar os futuros cidadãos do país, está praticamente destruído. A Universidade, por seu turno, despeja no mercado profissionais com formação incompleta, para dizer o mínimo. As cidades brasileiras estão cada vez mais barulhentas, poluídas, empobrecidas e feias. A saúde, periclitante. O mesmo podemos dizer da segurança pública. Da atividade cultural, nem é bom falar. Basta acompanhar no que se transformou a nossa música popular e também a nossa literatura.
Na política, com raras exceções, reina uma discórdia absurda. A lógica dos marginais, que tratam a todos como inimigos, impera no país. Parece que isso tem um nome: polarização. Uma catástrofe.Como reverter esse estado de coisas? Recuperar o Humanismo que foi, de certa forma, uma marca do Brasil em outro tempo? O que fazer?
Eu sou de 1952. Isso significa que vivi o suficiente para conhecer um Brasil diferente do que esse que aí está. Hoje, temos um país cada vez mais medíocre e humanamente muito pobre. Cresci em um período em que recebíamos, em nossa casa, homens como Astrojildo Pereira, fundador do Partido Comunista, mas também Gerardo Mello Mourão, integralista na origem. Meu pai respeitava o chefe da Ação Integralista Brasileira, Plínio Salgado. Sempre disse para mim que se tratava de um homem honesto. Meu velho combatia ideias e não pessoas. Deixou essa lição para mim.
Eram seus amigos Carlos Lacerda e Nertan Macedo, bem conservadores. Como eram seus amigos Lutero Vargas e Doutel de Andrade, líderes trabalhistas. Luiz Carlos Prestes, Agliberto Vieira de Azevedo, Oscar Niemeyer, Nelson Werneck Sodré e João Saldanha, comunistas de carteirinha, também eram amigos seus.
Penso assim também. Isto é, respeito quem vê o mundo de forma diferente; só não respeito o corrupto e o partidário da violência golpista. Esses, me dão asco. Torturador e ladrão não merecem a menor consideração por parte da sociedade. Ou não deveriam merecer.Dá saudades de um país chamado Brasil, onde um revolucionário como Giocondo Dias, em pleno Levante de Natal, em 1935, se colocou diante de um soldado da Aliança Nacional Libertadora (ANL) que queria fuzilar o governador Rafael Fernandes, já detido pelos revoltosos da Aliança. Giocondo, com quem tive a honra de atuar politicamente quando ele era secretário-geral do PCB, levou três tiros desse soldado na ocasião, mas não deixou que eliminasse fisicamente o governador, seu adversário político. Arriscou sua vida para salvar aquela de um desafeto. O nome disso é grandeza, ou estou enganado?
Pelo lado conservador, o próprio Plínio Salgado, a que me referi mais acima, ao ser informado que seu amigo comunista Fernando Santana poderia ser assassinado nas dependências de um quartel na Bahia, ligou imediatamente para Castelo Branco, o militar-presidente, e exigiu dele a soltura do seu adversário político. Caso contrário, ele iria fazer uma greve de fome na porta do presídio em questão. Castelo Branco concordou e deu ordens para que Fernando Santana fosse liberado. Que jeito?
Carlos Lacerda teve uma atitude semelhante em relação a Astrojildo Pereira, salvando-lhe a vida em 1965.Muitos comunistas - entre eles meu pai e Francisco Inácio de Almeida - conseguiram empregos depois do Golpe de 64 por intermédio de homens solidários, que pensavam totalmente diferente deles, e posso citar aqui Nertan Macedo e Prudente de Morais, neto. É uma questão de justiça, de reconhecer a verdade.
A vida demonstra que figuras como Alceu Amoroso Lima, Padre Hélder Câmara, Paulo Cavalcanti e Roland Corbisier tinham simpatias integralistas e depois mudaram de ideia, tornando-se democratas sinceros. Foram atraídos pelo Integralismo - essa convicção eu tenho, mas posso estar equivocado - muito mais pelo caráter nacionalista desse movimento do que pelo seu autoritarismo. Quando viram do que se tratava, deram meia volta.
O que eu quero dizer com isso? Combatemos ideias e não pessoas. Pois as nossas ideias mudam. O adversário de ontem pode perfeitamente ter tido razão e nós não percebemos sequer. E nós também podemos ter acertado em nossos juízos, sem que alguns notassem tampouco. Isso é da vida e é próprio do jogo democrático também.
Quem passou por dificuldades durante a ditadura - clandestinidade, prisão ou exílio, ou até mesmo as três situações reunidas - entende perfeitamente o que eu estou dizendo. E quem não passou, talvez possa levar em consideração o que eu digo aqui. Muitos liberais, civis e militares, se arriscaram para salvar pessoas que não pensavam como eles. É preciso reconhecer isso de uma vez por todas. Nomes? Adonias Filho, Júlio de Mesquita Filho, Ibrahim Sued, para ficarmos apenas no jornalismo. O Humanismo sempre foi um traço de união entre as pessoas de bem.
O que não entra nesse jogo é o gangster travestido de político. Veja bem, eu não digo sequer político corrupto, que ainda é um "político", apesar de tudo. Há alguns por aí. Eu me refiro aos marginais, à escória humana que tende a ocupar o espaço público, pela "direita" ou pela "esquerda", não importa nesse caso. Isso começou com o famigerado Adolf Hitler, notoriamente um bandido. Um sujeito que levou a própria sobrinha ao suicídio e andava em companhia de donos de bordéis. Outro salafrário foi Benito Mussolini, que chegou a internar a primeira mulher em um hospício para poder se casar de novo às escondidas e depois ainda mandar matar o pai de sua segunda mulher. E imaginar que esses indivíduos governaram países da tradição da Alemanha e da Itália.
Mas há outros cafajestes como Hitler e Mussolini ao redor do mundo hoje. Eu me refiro àquele "cidadão" que se aproxima das esferas de poder para simplesmente enriquecer à custa do suor do seu povo. E que no fundo topa tudo por dinheiro. Certa vez, eu me recusei a dizer que um determinado político - vá lá - brasileiro era da estirpe de Al Capone, para não ofender o gangster ítalo-americano. Al Capone merecia um pouco mais de respeito. Certas comparações não são bem-vindas. A que ponto chegamos, não é verdade? Precisamos reverter isso, antes que seja tarde demais e que essa escória se apodere de uma vez por todas do aparelho de Estado.
Vale dizer, temos que nos dotar novamente de um projeto de nação, afastando do nosso horizonte os aventureiros e outsiders. Repensar o mundo do trabalho, a esfera da cultura e democratizar a própria Democracia. Recorrendo a alianças políticas claras também.
Isso deu certo em 1955 (JK-Jango), em 1961-1964 (Governo João Goulart), durante a Frente Ampla, em 1966, até a eleição de Tancredo Neves em 1984, ao longo do Governo Itamar (1992-1994) e no acordo que ia se formando em torno da candidatura de Eduardo Campos, em 2014.
Decididamente, um espectro ronda o nosso país: o espectro da burguesia do crime e aquele do autoritarismo, no bojo da polarização.Mas ainda dá tempo de reverter esse quadro.
* Historiador e autor de Memorial dos Palmares, História pré-colonial do Brasil, Brasil, 500 anos em documentos, O caminho do alferes Tiradentes, Os Nove de 22 - O PCB na vida brasileira e De Oscar a Niemeyer, entre outros livros.
Minas Gerais, onde o Brasil aprendeu a liberdade, 25 de abril de 2024.
Commentaires