“O Tião me escreveu de Londres, Ivan. Ele pretende completar o curso de pós-graduação em economia e, em seguida, abrir mão, pouco a pouco, da profissão de economista. Tem todo meu apoio, claro. Mas a decisão é dele”.
Quem assim se expressava era meu querido amigo Antônio Luiz Soares, ele mesmo um ex-estudante de economia e, agora, diretor de fotografia. O ano? 1973, provavelmente em meados daquele ano. A nossa memória às vezes falha também. Mas deve ter sido mesmo em 1973, já que pouco depois dessa data o Antônio Luiz retornaria ao Brasil, retomando sua vitoriosa carreira, iniciada ao lado de Nelson Pereira dos Santos, em Como era gostoso o meu francês.
“Apoio integralmente essa decisão dele”, disse eu. E o Antônio escreveu para o amigo de Londres, dando a maior força. Afinal, ele mesmo tinha passado por esse dilema.
Sem um tostão furado no bolso, nós dividíamos, Antônio Luiz e eu, um pequeno quarto no bairro boêmio de Pigalle – um dos lugares mais movimentados da velha Paris, não muito distante do célebre Moulin Rouge e da agitadíssima Rue Le Pic. Em troca do modestíssimo alojamento, localizado na rue Ballu, nós limpávamos as janelas do apartamento da proprietária do quarto, situado no andar de baixo, no próprio prédio. Eram tempos difíceis, mas ricos em matéria de existência, de experiência. Pois não há universidade melhor do que uma cidade realmente plena de vida como Paris, sobretudo no começo da década de 70, ainda sob a influência de maio de 1968. Por essa época, Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir pontificavam no Café de Flore. Claude Lévi-Strauss dava seus cursos magistrais na Sorbonne, com o estruturalismo no auge da sua criatividade. O revolucionário Jacques Duclos, o chefe da Resistência contra Adolf Hitler na França, era um mito vivo. O maravilhoso Marc Chagall, desafiando a idade já avançadíssima, ainda pintava a aventura de viver. E, falsa baiana ou não, a estupenda Brigitte Bardot continuava deixando a moçada com água na boca. Ou seja, a França jogava com todos os seus trunfos. Nada mal.
E por essa época, sobretudo, nenhum de nós poderia imaginar o impacto que a decisão do Sebastião, o Tião da carta, teria sobre os rumos da cultura brasileira e internacional dali para frente. Ao deixar os números e os cálculos complicados de lado, ele clicaria bem no alvo. Para dizer a verdade, fomos nós quem mais lucramos com tudo aquilo.
Pois nascia precisamente naquele instante o fotógrafo Sebastião Salgado.
Extraído do livro A arte em estado de crônicas, de autoria de Ivan Alves Filho. Publicação da Aquarius Produções Culturais.
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